domingo, fevereiro 12, 2006

A cilada

A cilada
PONTO DE VISTA JORGE ALMEIDA FERNANDES
Público On Line, 12 Fevereiro 2006

A gesta dos cartoons dinamarqueses, em nome da liberdade de expressão, redundou num serviço prestado aos islamistas e às ditaduras árabes. Perdem a Europa, os Estados Unidos e os muçulmanos seculares. O Irão é o primeiro beneficiário

Écedo para medir os estragos da contra-ofensiva islâmica a propósito das caricaturas dinamarquesas. Os europeus caíram numa cilada que eles próprios armaram e fere os seus interesses vitais em dois planos: a implicação da Europa no Médio Oriente e o modelo de integração dos muçulmanos.
Que significam as caricaturas? Há três níveis de resposta. É legítimo representar a imagem de Maomé, porque as leis islâmicas não têm curso nos Estados europeus. Satirizar a religião é algo a que eles se têm de habituar, embora se trate de terreno perigoso, como tudo o que toca o sagrado. Ao contrário, a representação de Maomé como bombista significa colar a imagem de terrorista às comunidades islâmicas, criminalizá-las em bloco: é racismo. Ofende os padrões europeus de civilização. Pela manifesta vontade de humilhar os muçulmanos, alguns dos desenhos lembram as caricaturas anti-semitas dos tristes anos 1930. É algo que a "sensível" imprensa israelita denunciou.

Liberdade de expressão
Estava a crise a começar quando um jornal francês e, depois, outros diários continentais republicaram os cartoons em solidariedade com o Jyllands-Posten e em nome duma ameaçada liberdade de expressão. É o momento decisivo na explosão e expansão do processo, um acto "claramente incendiário" (Gary Younge, em The Nation).
Os grandes jornais ingleses e americanos fizeram a opção inversa: a liberdade de imprensa é intocável mas deve ser exercida com limites. Em nome da responsabilidade - não ofender gratuitamente religiões e comunidades.
The Independent (Londres) diz que não se trata apenas de liberdades: "Há o direito de expressão livre de toda a censura. Mas também há o direito, para numerosos muçulmanos, de viverem numa sociedade plural e laica sem se sentirem oprimidos, ameaçados ou achincalhados. Sobrepor um direito ao outro é a marca do fanatismo."
No Times, o antigo director Sir William Rees-Mogg publicou uma coluna que se condensa numa frase: "Nem Locke, o nosso grande profeta da liberdade, jamais teria defendido estes ofensivos cartoons." No Sunday Times, Simon Jenkins titulou: "Estes cartoons não defendem a liberdade de expressão". São "ofensivos e difamatórios". O Guardian conclui: "A republicação provocatória destes desenhos na Europa é mais contestável do que parece."
Os jornais americanos sublinharam o direito de tudo publicar, mas recusaram a reprodução de cartoons que julgaram ofensivos para uma comunidade. O Washington Post lançou esta semana um virulento ataque aos jornais europeus: republicaram as caricaturas "não por amor à liberdade de expressão", que não está ameaçada na Europa, mas por "insensibilidade ou hostilidade" aos outros.
A deriva continua: o jornal satírico francês Charlie-Hebdo já se comprometeu a publicar os cartoons sobre o Holocausto que o Irão promete.

A ofensiva islâmica
O Jyllands-Posten assumiu (em Setembro) que publicava os desenhos como um insulto calculado para educar a pequena comunidade muçulmana dinamarquesa. Não imaginou que estava a fornecer às ditaduras árabes e aos ulemas fundamentalistas o pretexto que procuravam para lançar uma ofensiva política contra a Europa.
A reacção das comunidades islâmicas europeias, à excepção dos "clássicos" islamistas de Londres, foi extremamente moderada, embora seja notório o ressentimento. Já no Médio Oriente houve um reacção desproporcionada, que se traduziu numa orquestrada onda de violência.
Reportou o New York Times que os cartoons dinamarqueses estiveram na ordem do dia da assembleia da Organização da Conferência Islâmica, em Meca, em Dezembro. Terá sido planeado um contra-ataque, dirigido pelos sauditas e organizações de ulemas: os fiéis foram informados da blasfémia dinamarquesa contra o Profeta.
A partir daqui, explica o islamólogo Olivier Roy, há uma conjunção de interesses políticos. Não é o choque de civilizações. Na querela das caricaturas, "o debate de valores não opõe Ocidente e Islão, é interno ao próprio Ocidente". "A violência foi instrumentalizada por Estados e movimentos políticos que rejeitam a presença dos europeus num certo número de crises no Médio Oriente" (Le Monde).
A Síria, por causa do Líbano, e o Irão, por causa do nuclear, querem pôr termo à intervenção europeia no Médio Oriente, tanto mais que, ao contrário da guerra do Iraque, ela é agora coordenada com os EUA e muito mais eficaz. No Afeganistão, os taliban terão tido algum papel.
Que move os sauditas? Mostrar aos súbditos que continuam a ser os guardiões da fé e, sobretudo, anular a pressão americana sobre as reformas. Disse ao New York Times um analista libanês: os protestos foram uma oportunidade para liquidar o "apelo ocidental" junto dos árabes, mostrando que a liberdade promovida pelo Ocidente se traduz no desrespeito pelo Islão. Trata-se igualmente de pôr em causa "a força moral" da Europa (Gilles Kepel).
Porquê a cumplicidade egípcia? A vitória eleitoral do Hamas leva o Cairo e outras capitais a fazer o mesmo desafio a Washington: se querem mais islamismo imponham mais eleições livres. A grande excepção é o ayatollah Ali Sistani que ordenou aos fiéis que ficassem tranquilos: os xiitas ganharam as eleições no Iraque e não querem desordem.
Há uma dimensão final, a mais preocupante e que, além da cultura, toca a paz civil na Europa: os fundamentalistas árabes querem submeter as comunidades muçulmanas europeias, prosseguir a doutrinação ideológica e impedir a sua integração na sociedade laica. Os imãs enviados do Médio Oriente vêm pregar nas mesquitas europeias a prevalência da sharia (lei islâmica) sobre o Estado de Direito, instigando os antagonismos confessionais.
O multiculturalismo, que em alguns países traduz o desígnio xenófobo de manter segregadas as comunidades "alógenas", está em acelerada derrapagem e levanta um problema crucial: a que lei obedecem os muçulmanos europeus? Por aqui passa o futuro da Europa.
Moral da história: islamistas e islamófobos esfregam as mãos, pois vêem confirmados os seus preconceitos. Os muçulmanos seculares, cá e lá, perdem margem de manobra. Os governos europeus, e o americano, estão na defensiva. O Irão, que tenta quebrar o isolamento, é o primeiro beneficiário.
E o Jyllands-Posten? Ao início, foi grandiloquente: "Se pedíssemos desculpa, trairíamos as gerações que lutaram [pelo direito de expressão] e os moderados muçulmanos com mente democrática." Quando já era tarde, pediu meia desculpa. Na quinta-feira, apresentou desculpas num jornal argelino. Ninguém lhes explicou que seria a última coisa a fazer após o incêndio das embaixadas.
"Há pessoas que clamam pela liberdade de expressão como compensação pela liberdade de pensar que raramente exercem", disse no século XIX o filósofo dinamarquês Soren Kierkgaard.